Quando medicina e família andam juntas
JSBD – Ano 23 – N.06 – 01 – DEZEMBRO-FEVEREIRO
Exemplos de mães que se inspiram em seus filhos para realizar projetos diversos não faltam. Mas quando o que impulsiona esse projeto é um problema de saúde, a história toma contornos diferentes. Esse é o caso de Tatiane Santos de Oliveira, mãe de Maria Luiza, que recebeu o diagnóstico de vitiligo aos três anos – hoje ela tem oito. Autora de A menina feita de nuvens, que narra o cotidiano de uma menina que tem manchinhas nos olhos – chamadas de nuvens – e poderes especiais, Tatiane escreveu o livro para ajudar a filha e outras crianças que passam pela doença a se sentir representadas com sensibilidade, poesia e alegria. “Quando tivemos o diagnóstico, procurei um livro voltado para o público infantil que falasse sobre o vitiligo e a perda de pigmentação em várias partes do corpo de forma lúdica, mas não encontrei. Então, como sou designer e trabalho com livros, resolvi fazer um conto para a minha filha se sentir representada. Fiz as ilustrações, o texto e montei tudo. Inicialmente, a ideia era imprimir em uma gráfica rápida só para ela, mas, conforme eu mostrava o arquivo para meus amigos, o retorno era tão positivo, que resolvi tentar publicar”. Lançado pela editora Estrela Cultural, a publicação tem ajudado outras famílias a reescrever a história dessas crianças “com nuvens”, fazendo-as se olharem com mais carinho e empatia para com sua condição.
A seguir, Tatiane nos relata o processo de descoberta do vitiligo, de como foi contar para a filha sobre sua nova realidade e como o atendimento diferenciado por parte do médico que atendeu a menina fez toda a diferença na forma como a família lidou com o tratamento. Quem quiser conhecer o Instagram dela, o perfil é o: @ameninafeitadenuvens
SBD: Quando começaram a aparecer as primeiras manchas, você já procurou um médico ou achou que pudesse ser outra coisa? E como foi esse primeiro contato com o especialista?
Tatiane: As primeiras manchinhas apareceram quando ela tinha três anos. No começo achava que eram marquinhas de machucado, mas quando percebi que estavam aumentando procurei um dermatologista. Não senti confiança logo de cara, especialmente quando deu sua opinião parecendo estar com pena de minha filha. Então, resolvi pesquisar outros médicos até que encontrei o que a acompanhou durante todo o processo.
SBD: Como foi descobrir que sua filha tinha vitiligo aos três anos? O que sentiu ao ouvir o diagnóstico?
Tatiane: Eu fiquei muito assustada, não sabia muito a respeito, e fiz algumas pesquisas que só assustavam ainda mais. As frases "não tem cura", "pode causar depressão", “pode causar problemas com autoestima" e mais um monte de informações ficaram assombrando minha cabeça. Até que cheguei a um especialista da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, o Dr. Paulo Luzio Marques, que foi quem acalmou meu coração, e iniciamos um tratamento.
SBD: Durante todo o processo até chegar ao diagnóstico final, quais foram os momentos mais angustiantes e por quê?
Tatiane: Foram os comentários das pessoas do nosso convívio e ao nosso redor. Muitos falavam do vitiligo como se fosse uma doença terminal, algo muito negativo. Era assim toda vez que eu contava sobre as manchinhas da Maria Luiza. E isso começou a nos incomodar. As reações eram exageradas, como se fosse o fim do mundo, mas eu sabia que não era. E novamente o médico que a atendia teve papel fundamental em nos acalmar e explicar que não era verdade o que ouvíamos a todo instante.
SBD: E como foi explicar esse diagnóstico para sua filha, já que era tão novinha? Ela compreendeu?
Tatiane: Eu expliquei que ela tinha uma doença de pele, que tinha um desenho especial. Como ela era muito novinha, tentei fazer tudo mais leve e lúdico para ela entender o motivo de passar as pomadinhas. E fizemos uma espécie de "tratamento alternativo", que consistia em elogiar sempre cada manchinha, procurar formatos divertidos, contornar com canetinha e ficou tudo mais divertido e leve. E assim ela se sentia especial. O médico dela também não escondia nada dela e explicava cada questionamento que ela fazia, sempre de forma firme, mas gentil.
SBD: Hoje ela já é maior e tem mais compreensão sobre o vitiligo? Ela encara bem ou questiona?
Tatiane: Hoje ela tem oito anos e pediu para parar o tratamento, mesmo com ele surtindo efeito. Ela não quer mais, não quer perder suas nuvenzinhas. Acho que isso diz muito sobre sua autoestima e a imagem empoderada que tem de si. E além de conversarmos em casa sobre o assunto, sempre de forma natural e sem vitimismos, a relação que ela criou com o médico dela também gerou essa confiança em si mesma.
SBD: Como foi o acompanhamento médico nesse período?
Tatiane: Com quase dois anos de tratamento, apareceram resultados positivos. Algumas áreas conseguimos pigmentar. Mas, mesmo com todo o carinho e a atenção do médico, ela resolveu interromper o tratamento. Se será algo momentâneo ou não eu não sei, mas acho que essa vontade diz muito sobre a aceitação dela em relação ao vitiligo.
SBD: Crianças, por vezes, são cruéis. Como sua filha reage a possíveis bullyings? Ela enfrenta bem o problema?
Tatiane: Por causa do nosso livro, eu fiz um escudo de proteção a nossa volta, e ela é vista com admiração. Na escola, foi trabalhado o livro com os coleguinhas. Com a família e os amigos, todos sabem da condição dela. Para se ter uma ideia de como avançamos com o livro, alguns amiguinhos até querem ter vitiligo e brincam que as marquinhas de machucado são as manchinhas da pele. Mas é importante lembrar que, quando a informação não chega até os locais que ela frequenta, recebe muitos olhares curiosos. Porém, parte dela mesma dizer que é feita de nuvens.
SBD: Na sua visão, qual é a importância do atendimento humanizado, e como ele pode mudar a percepção do paciente sobre a doença ou problema que esteja enfrentando. Você recebeu esse atendimento acolhedor durante esse processo com sua filha?
Tatiane: Eu acho fundamental que médicos saibam que a maneira que vão passar o diagnóstico faz toda a diferença para o paciente. Alguns passam a informação como se fosse uma sentença de morte, como se fosse acabar a vida da pessoa. O acolhimento é o melhor caminho e é preciso enfatizar como é fundamental falar com cuidado e carinho. Quem escuta, no caso o paciente, está cheio de dúvidas e medo. E o médico precisa entender isso. Antes de iniciar o tratamento, o médico conversou bastante com minha filha, explicou delicadamente o que ela tinha e tirou muitas dúvidas sobre a doença, sempre com bastante humanidade. Acho que é esta, aliás, a melhor palavra para definir como foi esse atendimento: humanizado.
SBD: Se pudesse compartilhar com a sociedade médica suas impressões ao longo desse caminho, do tratamento de sua filha, o que diria?
Tatiane: Eu diria aos médicos que o conhecimento que detêm é tão fundamental como a maneira que passarão isso para as famílias. Quando somos pegos de surpresa por algo que aparentemente não está bem na saúde de um familiar, especialmente quando falamos dos nossos filhos, precisamos, literalmente, daquele ombro amigo que vai entender que tudo é muito novo e que essa nova condição precisa ser compreendida pelas pessoas da família. Além disso, seria importante algum tipo de solicitação das sociedades médicas ao Ministério da Saúde para que mais informações sobre a doença fossem veiculadas nos meios de comunicação, nas escolas, em todos os lugares. Percebo que o motivo de bullyings, muitas vezes, é a falta de informação das pessoas e, por isso também, acho que deveria haver um calendário oficial na saúde para falar sobre vitiligo, como acontece em algumas cidades, como Piracicaba e Bragança Paulista, que têm campanhas específicas sobre a doença para toda a população. A SBD faz campanhas de conscientização anuais em junho. Mas é preciso, ainda, explicar claramente que o vitiligo não é contagioso, pois há muito preconceito não apenas com a aparência de quem tem, mas também pelo fato de muitos acreditarem que podem “pegar”.