Médica psiquiatra Carmita Abdo fala sobre cuidados com corpo e mente para lidar com a pandemia de Covid-19



Médica psiquiatra Carmita Abdo fala sobre cuidados com corpo e mente para lidar com a pandemia de Covid-19

19 de maio de 2021 0
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Entrevista foi publicada na edição de março/abril do JSBD

O enfrentamento de uma pandemia como a da Covid-19 causa danos na vida de todos: tanto da população, que muitas vezes se sente solitária devido ao confinamento e confusa em relação às informações divulgadas pela imprensa, quanto de quem está na linha de frente nos hospitais, como médicos e demais profissionais de saúde, que a cada dia recebem mais pessoas com a doença. Seguir os protocolos do Ministério da Saúde e se informar por meio dos órgãos oficiais e de sociedades médicas de especialidades são ações fundamentais para que menos pessoas se infectem pelo novo coronavírus. Entretanto, mesmo sabendo que a adoção de tais medidas é importante para evitar a propagação, muitos – médicos incluídos – acabam desenvolvendo estresse, ansiedade e até depressão devido ao distanciamento, às incertezas quanto ao futuro e ao medo de contrair a doença. E como não abalar a saúde mental com tantas dúvidas e inseguranças?

Jornal da SBD conversou com a médica psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Hospital das Clínicas da FMUSP e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria(ABP) no triênio 2017-2019, para saber como é possível amenizar os reflexos desse período na vida de profissionais da saúde e pacientes. A entrevista foi publicada na edição de março/abril do periódico.

JSBD: O que pode ser feito para minimizar o estresse do confinamento? Atividades de lazer e o estímulo à criatividade são importantes tanto para a população quanto para médicos em geral?
Carmita Abdo: O confinamento, por si só, pode gerar estresse, porque nos sentimos tolhidos, limitados. É ainda pior para aquelas pessoas que não encontram em casa atividades com que se envolver ou que estão em relacionamentos conflituosos. Quanto maior o desconforto doméstico, maior o estresse do confinamento; obviamente atividades, sejam elas de lazer ou de trabalho, ajudam a lidar com essa situação. Prática de exercícios físicos, uma agenda balanceada com entretenimento e tarefas diárias, cuidados com a aparência, contatos virtuais, brincadeiras com as crianças da casa são medidas protetivas. Mas cada um deve buscar preencher seu tempo com escolhas pessoais, para não criar uma rotina mais entediante do que o próprio ócio.

JSBD: E como lidar com a solidão? Especificamente com relação às pessoas que moram sozinhas sejam elas jovens ou idosas.
CA: Estar só pode ser uma preciosa oportunidade de organização interna, de resgate do equilíbrio. Por outro lado, vale salientar que confinamento não é sinônimo de isolamento. Bons filmes, bons livros, papos pela internet, culinária, jardinagem, cuidado com os animais são alternativas para se contrapor ao distanciamento físico das pessoas queridas. É até possível programar um happy hour ou um almoço, cada um na sua casa, num encontro virtual, com direito a fundo musical e boa conversa.

JSBD: No caso de pessoas que já possuem transtornos de estresse agudo, bem como manias e compulsões, em momentos como este os sintomas podem se acentuar? Como agir?
CA: Os sintomas podem se acentuar em quem já apresenta esses transtornos. Nesses casos, uma ajuda especializada deverá ser retomada ou intensificada. Além disso, procurar manter-se ocupado, evitar dormir demais (como fuga) ou de menos (privação do sono é nociva à saúde mental), evitar também a ociosidade absoluta, o sedentarismo, as bebidas em excesso são atitudes que ajudam.

JSBD: Como lidar com as situações de estresse pós-traumático após quarentena tanto na população como também nos profissionais de saúde?
CA: Durante a quarentena, o equilíbrio emocional pode se romper pelo medo da pandemia, pela insegurança econômica, pelo distanciamento físico de pessoas queridas, pela sobrecarga de trabalho (dos profissionais de saúde e dos home office sem hora para começar nem para acabar), pelos hábitos forçosa e repentinamente modificados. A melhor forma de lidar é admitir que se fragilizou, fazer do cuidado pessoal a prioridade, até se restabelecer por meio de relaxamento, mindfulness, exercícios físicos, hobbies, terapias e medicamentos, quando for o caso.

JSBD: Uma vida financeira desequilibrada pode afetar muito o psicológico. E em um país com tantos autônomos, a pandemia fez seus lucros certamente caírem. Como fazer essa equação para não afetar a saúde mental?
CA: A pandemia está nos ensinando que podemos viver com menos e que os desafios nos mantêm vivos. Se de um lado, sofremos perdas; de outro, constatamos que essa perda é geral, o que nos impulsiona a separar o essencial do supérfluo, a socorrer os menos favorecidos do que nós. Estamos reaprendendo que dependemos uns dos outros para conseguir vencer. Vitória é sair saudável dessa guerra. Terminar materialmente mais pobre é o preço que vamos pagar.

JSBD: Muita gente está fazendo lives para manter contato com parentes e amigos. No início, pareceu uma forma de interagir. Mas acredita que com o tempo possa não fazer bem, já que pode gerar algum tipo de ansiedade? Fale sobre isso.
CA: Por enquanto as lives estão cumprindo o seu papel de aproximar as pessoas e propiciar a interação possível. Quando essa alternativa se esgotar, não tenho dúvida de que nossa criatividade já terá descoberto outras formas tão ou mais eficazes. Vamos evoluir num ritmo eletrizante para superar a ansiedade. Pode crer, novos meios de contato serão descobertos e praticados, a cada dia de confinamento. Por exemplo? Cantar e dançar nas varandas dos apartamentos, brindar à distância com cálices presos a hastes, registrar e divulgar cenas pitorescas das nossas ruas quase desertas. Muita gente já começa a se interessar por costumes de países dos quais nunca antes ouviu falar. Estamos ampliando os horizontes e o jeito de fazer as mesmas coisas, confirmando que a criatividade é filha da adversidade.

JSBD: Médicos que estão na linha de frente do combate à Covid-19 tendem a se deprimir mais rapidamente que os demais? Explique por que, uma vez que, em tese, médicos já estão acostumados a lidar com a morte.
CA: Se as circunstâncias nos exigem  acima de nossas forças; se nos sentimos desafiados e desarmados, apesar de nossa coragem; se há falta de perspectiva a curto e médio prazo; se compaixão pelos pacientes é o sentimento possível no momento, não há como o médico não se entristecer ou até deprimir (se a predisposição for para tal). Acostumado a lidar com a morte, ele se mantém hígido, quando sabe o que fazer para curar ou minimizar a doença. Diante de um inimigo praticamente desconhecido, contando com poucas armas para defesa e pouca ou nenhuma munição para o ataque, os médicos que estão na linha de frente da Covid-19 vivem a dolorosa experiência de dias frustrantes e a insana luta por dias mais promissores para si e, em especial, para seus pacientes.

JSBD: Há hoje algum tipo de curso ou atualização para os médicos que estão trabalhando com esses pacientes com corona nos hospitais?
CA: Sim, há inúmeros cursos, palestras, debates e lives sendo oferecidos online para que o médico se instrumentalize melhor e se atualize. E estão sendo divulgados pelas redes sociais. Diversificados quanto às temáticas, contemplam diferentes especialidades e interesses.

JSBD: A crise, pelo que se diz, está apenas começando. Tanto que profissionais das mais diversas áreas de saúde estão sendo convocados. O que diria, neste momento para os médicos de consultório, que não estão acostumados à rotina de hospitais? Como se preparar para isso?
CA: O consultório nem sempre é um lugar mais protegido do que o front de uma pandemia. A crise se alastra para além dos hospitais e será combatida com a experiência que o médico adquiriu no exercício da medicina, em tempos de não crise. Para qualquer situação, o preparo deve ser não só técnico, mas especialmente emocional. Ser verdadeiramente útil, vai depender de estar saudável. Recomendo fortemente que os colegas se protejam com EPIs adequadas e respeitando os seus limites. Não negligenciem de sua integridade física e mental. Só assim estarão aptos para continuar salvando vidas. O certo é que a cada dia saberemos um pouco mais sobre o novo coronavírus, o que nos tornará dia a dia mais habilitados para combatê-lo e vencer.

JSBD: Alguns médicos, pelo fato de estar na linha de frente, vêm-se afastando de suas famílias. Como manter a mente ativa, o trabalho fluindo, quando a vida pessoal está tão destroçada?
CA: Quando está nessa atividade, tenho certeza de que o médico se concentra e nem percebe o quanto (em tempo e espaço) está afastado de sua própria vida. Nos raros momentos de descanso, essa consciência volta. É nesses momentos que o pensamento deve se desapegar do presente. Nada é para sempre! Nem mesmo uma pandemia da magnitude da Covid-19. Sua vida de volta depende de você resistir (recordando os momentos felizes) e acreditar (a cada vida que salva).

JSBD: E os parentes dos doentes? Algum protocolo que esteja sendo seguido pelos médicos para dar amparo a essas pessoas?
CA: Sim, temos protocolos já elaborados e divulgados. Sugiro, por exemplo, acessar o site da Associação Médica Brasileira (AMB) para conhecer as recomendações de como lidar com a Covid-19: https://amb.org.br/. Há outras excelentes diretrizes elaboradas, divulgadas e diariamente atualizadas, à medida que mais vamos sabendo sobre essa doença.

JSBD: A solidariedade entre as pessoas diante de uma pandemia reforça os laços de afeto e é capaz de transformar a maneira como a sociedade enxerga a vida daqui para frente?
CA: A solidariedade é um diferencial que preserva vidas. Só quando pensamos e agimos na direção de proteger o outro, conseguimos proteger a população e, por conseguinte, a nós mesmos. O planeta havia se esquecido disso. A pandemia nos roubou a convivência com nossos pares para que recobrássemos essa consciência.

JSBD: Quando a senhora acha que a vida vai voltar à normalidade de fato?
CA: Essa previsão é difícil de se fazer. Pode ser de repente, porque o acaso ajudou e foi descoberta uma vacina, um remédio. Pode demorar, porque as pesquisas dependem de tempo para um desfecho confiável. De qualquer forma, não há como voltar ao ponto de onde partimos. A normalidade será outra, quando essa verdadeira guerra terminar. Estaremos menos crédulos e menos confiantes em nossa imunidade, porém mais sábios e mais felizes.





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