A doença que criou uma nova economia



A doença que criou uma nova economia

9 de julho de 2020 0

JSBDv24n3 – maio/junho 2020

Outros olhares

Muitos médicos que estão à frente das unidades de tratamento intensivo para Covid-19 têm enfrentado o medo e a insegurança em seu cotidiano para atender a população em meio a disseminação mundial de uma doença que pode ser transmitida por apenas um toque. Guardadas as devidas proporções, o Brasil já passou por pandemia semelhante à que acontece atualmente, mas utilizando formas de tratamento muito diferentes. A hanseníase, ou lepra, nome pelo qual a doença era conhecida no passado, motivou a criação dos leprosários, comunidades isoladas em que somente pessoas diagnosticadas com a doença poderiam ficar.
 
Criados por volta de 1920 e fechados definitivamente no Brasil em 1986, os leprosários – esses locais existiam também em países da Europa, especialmente, em Portugal e na Grécia –, que também eram chamados de asilos ou casas de isolamento, funcionavam como comunidades exclusivas para quem tinha a enfermidade. “Eram praticamente cidades fechadas, com comércio, escola, cartório, hospital, praças etc. Possuíam até dinheiro próprio; as fichas, que tinham valores equivalentes aos mil-réis”, explica o dermatologista Gerson Dellatorre, preceptor do Hospital Santa Casa de Curitiba e colecionador dessas moedas ou fichas. Ele lembra, ainda, que embora o tratamento para a cura da hanseníase tenha sido descoberto nos anos 1940, os locais foram mantidos até idos de 1980, e com inúmeros relatos sobre violência de todas as formas e muito preconceito com os que de lá saíam.
 
Aa fichas dos leprosários, embora agucem a curiosidade pelo contexto em que foram criadas, mostram que o Brasil de 100 anos atrás não era tão diferente do que encontramos hoje, com a violência crescente e a segregação de determinados grupos. A seguir, Dellatorre fala um pouco mais sobre história, medicina e a forma como evoluímos ao lidar com situações de emergência de saúde pública, como as pandemias.
 
JSBD: Por que teve a ideia de colecionar as moedas? A coleção foi motivada por alguma experiência pessoal?
Gerson Dellatorre: Me interessei pela numismática (termo utilizado para se referir ao estudo e/ou coleção de moedas) quando ainda cursava a residência de dermatologia na Santa Casa de Curitiba. Estava com a televisão ligada no History Channel, e o programa falava a respeito de moedas − ou, como os numismatas preferem denominá-las nesses casos, fichas − de um leprosário brasileiro. Como a hanseníase estava presente no nosso dia a dia de atendimentos, aquilo muito me chamou atenção pelo seu valor histórico. A partir disso, eu passei a procurar a existência delas no Brasil e também em outros países, buscando conhecer um pouco da história de cada local.
 
JSBD: Essas fichas de uso exclusivo dentro dos leprosários realmente evitavam a contaminação entre outras pessoas? Não havia o perigo de contágio para as pessoas que abasteciam o local com insumos, entre outras coisas?
GD: Os locais eram abastecidos pelo mundo externo em locais específicos para o contato com o exterior. Nos leprosários, todos os insumos que entravam (comida, carta ou qualquer outro objeto) costumavam ser devidamente higienizados. Os familiares que visitavam os internos muitas vezes ficavam separados por vidros ou a uma determinada distância. Com o tempo, muitas famílias iam deixando de visitar os doentes e tocando suas vidas lá fora (até porque também passariam a ser estigmatizadas), enquanto quem recebeu a “sentença” recomeçava outra vida dentro do leprosário. Hoje, sabemos que esses cuidados eram excessivos, pois o perigo de contágio é relevante apenas para quem convive de forma próxima com o doente por muitos anos.
 
JSBD: Todos os pacientes eram colocados nos mesmos leprosários ou existiam "graus ou tipos" variados de leprosários?
GD:
Acredito que o critério maior fosse o geográfico. As pessoas eram internadas em locais próximos àqueles em que viviam.
 
JSBD: Houve algum caso de saída dessas fichas das colônias, tendo, então, infectado alguém?
GD:
Não, pois não era um perigo real, mas sim fruto do desconhecimento e do medo próprios da época.
 
JSBD: Quantos leprosários existiram no Brasil?
GD:
Cerca de 40, e um detalhe curioso é que, embora a descoberta do tratamento da doença tenha acontecido em 1943, esses locais foram mantidos até os anos 1980. Acredito que os mantiveram porque as pessoas que lá viviam eram tão negativamente rotuladas, que a volta à sociedade seria difícil para os ex-doentes.
 
JSBD: As fichas eram diferenciadas apenas no seu formato, mas tinham os valores da época ou eram diferentes em outros aspectos? De que material eram feitas?
GD:
Algumas, como as da Colônia Santa Tereza (SC) e da Colônia Itapuã (RS), eram feitas de latão e foram cunhadas por uma funilaria, a Siderúrgica Eberle, da cidade de Caxias do Sul, que tinha expertise na produção de lamparinas, talheres, espadas e outros itens metálicos. Já nas fichas colombianas, por exemplo, embora o metal escolhido fosse o bronze, foram utilizadas diferentes ligas, produzindo fichas com tonalidades que iam do marrom-escuro ao amarelo.

JSBD: Como médico, o que acha das colônias? Eram eficientes para evitar o contágio mesmo?
GD:
Na minha visão, em última análise, elas representam uma época marcada pela ausência da cura da doença e pelo medo extremo de ser por ela contaminado. Havia ainda a falta de conhecimento mais amplo sobre suas formas de transmissão, e isso levou a políticas de isolamento compulsório em vários países do mundo, tornando a hanseníase uma das doenças mais estigmatizantes na história da humanidade.

JSBD: Essas fichas podem significar um retrato de como a segregação é cruel, já que esses pacientes que as utilizavam eram deixados e não tinham muita assistência (são retratados muitos casos de violência, roubos etc.). Poderia fazer uma breve associação sobre o que, comparativamente, seriam esses leprosários hoje?
GD:
É difícil encontrar um paralelo exato àquela situação nos dias de hoje. A saúde pública sanitarista, antigamente, cometia excessos, mas o fazia com base nos conhecimentos científicos que possuía, e é muito complicado fazer um julgamento dessa situação. É claro que, com o conhecimento que temos hoje, seria inconcebível criar esses locais. A medicina evolui e continua evoluindo com esses tropeços. Tenho certeza de que, daqui a 50 anos, o que hoje praticamos e achamos que esteja certo será criticado. Essa evolução, que antes acontecia em espaço de décadas, hoje ocorre em horas. Essa rapidez das informações tem como efeito colateral, por exemplo, deixar a pesquisa mais passível de erros, como vimos recentemente naquele estudo sobre tratamento da Covid-19 que foi removido do The Lancet. Já imagino em 2050 alguém dando uma entrevista contando peculiaridades desse isolamento social que estamos enfrentando, e espero que lá na frente achem que tudo foi um absurdo, pois isso seria sinal de que encontraram a resolução do problema.
 
JSBD: Estamos vivendo tempos bastante obscuros, até com negação da ciência. Acredita que algo assim como esses leprosários e a criação dessas moedas possa ser retomado em tempos de Covid-19?
GD:
Acredito que não; são situações diferentes: uma doença crônica, estigmatizante e altamente debilitante se não tratada, e uma doença aguda (Covid).
 
JSBD: Como era uma “economia” separada do resto do país, como as pessoas eram “remuneradas” dentro dessas colônias? Como era o dia a dia nas colônias? Havia médicos? Todos, incluindo quem trabalhava, eram doentes? Há alguma curiosidade sobre essas moedas?
GD:
Havia médicos, assistentes de enfermagem (muitas vezes eram freiras). Alguns leprosários, como o da Colônia Santa Tereza, em São Pedro de Alcântara (SC), eram como pequenas cidades, incluindo pequenos comércios. Possuía também hospital, residências das famílias, escola, cartório, delegacia, igreja, cadeia, praça de esportes, oficinas, cemitério  e até um cinema. Para o funcionamento desse comércio, obrigatoriamente, era necessário um numerário, e, como se acreditava que o dinheiro nacional não poderia circular ali dentro, foi idealizado um dinheiro apenas para uso local: as fichas da C.S.T. Existem cinco tipos desse dinheiro, com valores faciais de 1.000, 500, 300, 200 e 100 réis. No reverso, todos apresentam as iniciais C.S.T., com o detalhe dos pontos em ligeiro declive para a direita. Os relatos dizem que as fichas de 300 réis eram as mais usadas (e as mais raras dessa colônia), sendo esse justamente o valor da entrada do cinema. Nem a reforma monetária brasileira de 1942 afetou o comércio interno, que continuou a usar as moedas com o padrão mil-réis.
 
JSBD: Houve casos de cura de pacientes de leprosários naquela época?
GD:
O isolamento em si não curava ninguém. Apesar de sabermos hoje que alguns subtipos clínicos de hanseníase apresentam involução espontânea, o isolamento em tese apenas diminuía a transmissão da doença para outras pessoas. A cura só veio a ser disponível no final da década de 1940, com a comercialização da dapsona, ficando mais eficaz muitos anos após, com o advento da terapia combinada (poliquimioterapia).
 
JSBD: Novamente fazendo uma associação com o período atual, quando não nos tocamos para evitar a contaminação, que lições aprendidas pela medicina naquela época podem ser usadas hoje, para evitar a contaminação pela Covid-19?
GD:
A Covid-19 apresenta infectividade exponencialmente maior do que a micobactéria da hanseníase. Para a Covid, na ausência de um tratamento, o distanciamento social e as medidas de higiene e de uso de máscara são, hoje, infelizmente, as únicas armas que possuímos para conter seu alastramento.
 
JSBD: Voltando à sua coleção, quantas peças ela tem, e o que representam as moedas?
GD:
Hoje, na minha coleção tenho cerca de 20 fichas, de diferentes países (Brasil, Colômbia, Venezuela e também Filipinas). As fichas mais raras, como as de leprosários panamenhos e japoneses, são difíceis de achar. Acabam raramente aparecendo à venda em leilões virtuais, com preços altos. Recentemente, pedi a um colega dermatologista que passou por um estágio no Japão que, se encontrasse uma casa de moedas, perguntasse a respeito de uma muito rara, do leprosário Nagashima Aisei-en. O atendente a conhecia, mas informou que seria raríssimo encontrá-la (e consequentemente muito cara).
 
JSBD: Conhece outras pessoas que façam coleções parecidas?
GD:
Não conheço, mas imagino que esta entrevista seja uma oportunidade para, quem sabe, encontrar alguns colegas dermatologistas que também colecionem.





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