Manifestações dermatológicas relacionadas à Covid-19
JSBDv24n3 – maio/junho 2020
Artigo
O Sars-CoV-2 é o 17o membro identificado dos vírus pertencentes ao gênero Betacoronavirus, que em dezembro de 2019 iniciou a epidemia de uma síndrome gripal em Wuhan (província de Hubei, na China), causando a agora denominada coronavirusdisease-2019 (Covid-19), a qual, em 15% dos doentes, evolui para síndrome do desconforto respiratório grave, podendo causar óbito em cerca de 0,5 a 5% dos infectados diagnosticados por recuperação viral (RT-PCR) ou sorologia documentada, dependendo da área geográfica em que ocorre, faixa etária e suporte hospitalar disponível. Em janeiro de 2020, o vírus caminhou em seu trajeto pandêmico, de forma que na primeira quinzena do mesmo ano infectou mais de oito milhões de pessoas em todo o globo, exceto na Antártida, e atingiu a fatalidade em mais de 500 mil pessoas.
A exemplo de seus parentes próximos, a Sars de 2002-2003 e a Mers de 2012, o contágio se faz pelas vias aéreas, questionando-se a via fecal-oral como possível. A combinação de alta avidez da sua proteína estrutural, denominada Spike (proteína S), pela enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2), nas células do hospedeiro humano, tornou o vírus mais efetivo em infectá-las do que seus parentes anteriores betacoronavírus. A abundância da ECA2 nas membranas epiteliais dos bronquíolos terminais e pneumócitos do tipo II (ou células alveolares tipo 2) tornou os pulmões humanos o órgão-alvo do vírus em sua ascensão pela infecção e uso do maquinário de síntese de RNA e proteica do ser humano para sua propagação em novas cópias virais. Vale ressaltar, que estudos de 2012 demonstraram que a pele expressa a ECA2 nas células endoteliais da derme, células dendríticas dérmicas, mastócitos, queratinócitos da camada basal da epiderme e células epiteliais das glândulas écrinas.
Cerca de 80% da população, apesar de susceptível à infecção pelo Sars-CoV-2 sofrerá a infecção, na inexistência de uma vacina, porém será assintomática ou oligossintomática. A doença sintomática dura em média 14 dias.
Naturalmente, a imunidade inata com o sistema monocítico-macrofágico e o sistema do complemento são ativados produzindo quantidades expressivas de interferon do tipo I (alfa e beta), com o complemento auxiliando as células apresentadoras de antígenos a ativar a imunidade adaptativa (células T, CD4 e CD8, além de células B) a fim de expressarem um fenótipo TH1, TH17, e posteriormente promovendo em torno do quinto ao sétimo dia de infecção viral a síntese de IgA, IgM e posteriormente o pico de IgG. No entanto, ainda há controvérsia quanto a todos os infectados exprimirem anticorpos com epítopos para os antígenos utilizados nos testes sorológicos atualmente disponíveis. Nos doentes (sintomáticos) graus variados de ativação inflamatória e do sistema de coagulação ocorrem determinando fenótipos e desfechos distintos da doença.
Em torno de 8% dos doentes hospitalizados apresentam manifestações dermatológicas, podendo algumas ser atribuídas à infecção viral, e outras questionadas se representam reações adversas às drogas usadas no seu tratamento.
Os fenótipos das manifestações dermatológicas também espelham o espectro da ativação sistêmica e/ou tegumentar da inflamação e/ou coagulação. A frequência entre elas varia de acordo com a série de pacientes relatada na literatura internacional. É possível categorizá-las em cinco padrões gerais que, dentro deles, abrigam subtipos, tornando a Covid-19 mais uma mimetizadora de diagnósticos diferenciais na dermatologia, a saber, em ordem de possível frequência:
• erupções exantemáticas
• erupções urticariformes
• erupções papulovesiculosas
• erupções eritema pérnio-símile
• erupções do tipo livedo racemosa, púrpura retiforme e/ou acroisquemia.
A cronologia com que elas ocorrem durante a Covid-19 não está ainda bem estabelecida, porém alguns casos se comportam de forma distinta:
• As erupções urticariformes parecem poder anteceder em alguns poucos dias, em alguns doentes os sintomas de síndrome gripal.
• As erupções exantematosas tendem a ocorrer de forma concomitante ao período de estado da doença. Podem ser do tipo morbiliforme, eritema multiforme-símile, Sdrife-símile (Symmetrical Drug Reaction Intertriginous and Flexural Exanthema-símile), exantemas purpúricos, erupção pitiríase rósea-símile, além de eritema em áreas fotoexpostas.
• As lesões do tipo eritema pérnio-símile podem ocorrer em agregação familiar, com crianças e adolescentes oligo ou assintomáticos com essas lesões e parentes que tiveram ou têm Covid-19.
• As formas eritêmato-papulosas, papulosas ou papulovesiculosas, podem lembrar doença de Grover, prurigo estrófulo, lesões tipo picadas de percevejo (cimidíase), pulíase, erupção variceliforme de Kaposi, disidrose e geralmente ocorrem no período de estado da doença ou persistem após o desaparecimento dos sintomas da síndrome gripal, geralmente sendo muito pruriginosos.
• Lesões tipo púrpura palpável denotam ativação do complemento e doença de grau mais intensa, bem como o livedo racemosa, o qual deve manter o médico vigilante quanto à coagulação intravascular disseminada em instalação, a púrpura retiforme e a acroisquemia.
Neste último cenário clínico dermatológico, mesmo na ausência de dispneia (hipoxemia silenciosa) esses achados cutâneos podem indicar doença muito grave e requerer imediata hospitalização com anticoagulação plena, com heparina.
Enfim, durante um período pandêmico a vigilância médica frente a sinais cutâneos deve levar em conta dados epidemiológicos dos contatos domiciliares, amigos e vizinhos do paciente, sintomas clínicos de síndrome gripal, anosmia e ageusia, diarreia e vômitos, histórico medicamentoso detalhado, a fim de se fazer o diagnóstico laboratorial da infecção viral em vigência (RT-PCR por secreção coletada com swab da nasofaringe) ou do contato com o Sars-CoV-2 pelo exame sorológico. Há que ressaltar o fato de as manifestações dermatológicas não serem patognomônicas da Covid-19 e devem ser diagnósticos diferenciais de múltiplas outras doenças, as quais ainda são epidêmicas ou endêmicas no nosso meio, como a dengue, sífilis, sarampo, hanseníase tipo fenômeno de Lucio, entre outras.
Aos meios acadêmicos sugerimos o estabelecimento de registro fotográfico, histopatológico e protocolos de exame de imuno-histoquímica para proteínas do Sars-CoV-2, a fim de demonstrar sua presença na pele e microscopia eletrônica de transmissão, para registro do vírus nas estruturas cutâneas.
Infelizmente como tragédia humanitária, mas também como oportunidade à ciência, a Covid-19 com certeza irá mudar não só nossa sociedade em relação ao comportamento socioeconômico, mas também será um marco de avanço científico, como foi a Aids nas últimas décadas do século 20.
Leitura sugerida (acesso aberto)
Criado PR, Abdalla BMZ, de Assis IC, van Blarcum de Graaff Mello C, Caputo GC, Vieira IC. Are the cutaneous manifestations during or due to SARS-CoV-2 infection/COVID-19 frequent or not? Revision of possible pathophysiologic mechanisms [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Inflamm Res. 2020;1-12. doi:10.1007/s00011-020-01370-w